D. Rui Valério, novo Patriarca de Lisboa
Saudação de D. Rui Valério na celebração de tomada de posse
1. A presença na casa do Senhor, encoraja-me a fazer minhas as palavras da Virgem Maria: «a minha alma glorifica o Senhor e o meu espírito se alegra em Deus, meu Salvador» (Lc 1, 46-47) - sinto júbilo por experimentar tão intimamente a força do amor de Deus, que verdadeiramente elege e recria continuamente nas sendas da história, e que, tomando em suas mãos a fragilidade do barro de cada um, lhe confere a sua Beleza, a sua Bondade, a sua Verdade e o seu Amor. Ilumina-me de esperança o processo da salvação integral que, em Cristo, quer oferecer, e que nunca cessa de repropor ao mundo e à humanidade, através de um estilo que Santo Agostinho imortalizou nas palavras “Sem ti, nada faz Aquele que, mesmo sem ti te criou”.
Reconheço, com gratidão, a profundidade profética impressa no gesto e na circunstância de tomar posse como Patriarca de Lisboa, precisamente na casa do Senhor, uma força e mensagem simbólica, sim, mas também cheia de pathos e compromisso: sempre tudo terá início a partir d’Ele, de Cristo, e é n’Ele que começará cada passo a fazer. Como entoa S. João no Prólogo do seu evangelho “Por Ele é que tudo começou a existir; e sem Ele nada veio à existência.” Porque só “Nele é que está a Vida, E a Vida é a Luz dos homens.” (Jo 1, 3-4) Eis a pauta que conduzirá cada dia da nossa vida.
2. Saúdo Vossa Eminência senhor D. Manuel Clemente e, na Sua pessoa, a minha reverência pelo caminho histórico, espiritual e pastoral do Patriarcado, que Vossa Eminência enalteceu e engrandeceu. Agradeço a dádiva da Sua amizade e o marco evangelizador que imprimiu na diocese e que, como Pastor e líder, soube contagiar a todo o povo de Deus, nomeadamente na construção de pontes entre o evangelho e a integralidade da vida.
Saúdo o Senhor Núncio Apostólico e agradeço toda a sua dedicação e espírito de missão, reveladoras de um grande amor à Igreja de Lisboa. Na pessoa de V.ª Excelência a minha total fidelidade, disponibilidade e comunhão a Sua Santidade, o Papa Francisco.
Saúdo os Reverendíssimos Senhores Bispos, D. Joaquim Mendes e D. Américo Aguiar; para além do nível do acolhimento com que me receberam, só oferecido a um irmão, agradeço o testemunho de dedicação, entrega e competência com que servem a Igreja. O nível organizativo e de conteúdos das Jornada Mundial da Juventude é apenas uma expressão do nível e da grandeza do vosso ministério.
Saúdo o Ilustríssimo Cabido e todo o Presbitério de Lisboa. A nossa presença nesta Igreja Mãe de Lisboa, onde nos encontramos a tomar posse das funções de Pastor, exprime bem como é perante vós, e convosco, e no meio de vós que nos posicionamos. Gostaria de expressar aqui o meu agradecimento, certo em nome pessoal, mas também em nome da comunidade cristã, pela seriedade que colocais no desempenho do vosso múnus presbiteral, mas sobretudo porque sois cultores de vida espiritual, que é já uma marca do perfil sacerdotal de Lisboa.
Caríssimos, o presbitério é a fonte que estrutura o presbítero e a sua essência é a comunhão. O Concílio Vaticano II, contrariamente ao que teria sido a sua genuína intenção, quando reafirma a centralidade da koinonia, não deseja apenas conferir-lhe um caráter institucional. Como observava um dos comentadores mais autorizados dos seus documentos, monsenhor Gérard Philips, a comunhão está referida, também, à dimensão antropológica e pessoal de cada membro do Povo de Deus. Significa que, ao bom estilo evangélico, quando Jesus envolve na força do amor todas as dimensões do ser humano - porque se «ama a Deus com todo o coração, com toda a alma e com toda a mente” (Mt 22, 37) -, assim nós realizaremos a comunhão como irmãos, vivendo-a com todo o nosso ser e em todos os níveis da nossa realidade.
Saúdo os digníssimos Diáconos Permanentes, manifestando-vos não só o meu sentido reconhecimento pelo serviço que, tão devotadamente, ofereceis à Igreja e ao Povo de Deus, congratulo-me também convosco porque, a servir, constituis uma força de esperança para a humanidade.
Saúdo as consagradas e os consagrados; obrigado pela vossa devotada vida de oração e pela vida de serviço apostólico com que cimentais as estruturas da edificação do Reino de Deus. Tendes o privilégio de viver do essencial da vida e de serdes, dessa essencialidade, profetas e testemunhas. Ao mundo, tantas vezes desorientado, reproponde, com alegria, a grandeza amorosa da castidade, a radicalidade da pobreza, a liberdade da obediência.
Saúdo o santo Povo de Deus, os seminaristas, os leigos, os jovens, todas as mulheres e homens de boa vontade. Obrigado pelo vosso testemunho de santidade e de amor a Cristo e à Igreja. Vós fostes constituídos os principais depositários da palavra que o Espírito Santo dirigiu à Igreja de Lisboa, no decorrer das JMJ. Estais convocados para a expressar. E nós, prontos para a receber.
Saúdo todas as vítimas de todos os tipos de abuso. Não repito palavras já esmorecidas pelo uso, mas dou-vos, e darei sempre, a minha solidariedade, a minha presença e constante proximidade. Convosco carregarei o fardo do vosso sofrimento, acreditando na cura e redenção.
3. Por fim, uma referência ao tempo em que nos situamos: é dia de sábado e memória litúrgica de Santa Maria. Providencialmente, evoca o silêncio do sábado santo, mas que a companhia da Virgem Santíssima nos abra à dimensão eclesial e ao seu envio para a missão.
Evoco, nesta hora solene, a obra de Deus na Igreja de Lisboa, ao longo da história. Verdadeiro sinal dos tempos e do estímulo a caminhar no amor, na esperança e na fé incondicional em Deus, Pai, Filho e Espírito Santo; mas, com particular incidência, as bênçãos que o mesmo Senhor a quem pertence o ontem, o hoje e a eternidade, derramou no passado recente: o caminho sinodal, a realização da Jornada Mundial da Juventude e as muitas vidas de santidade de sacerdotes, de consagrados e de leigos. Tudo tem contribuído para um compromisso de evangelização e para um caminho de sinodalidade.
Em segundo lugar, as vicissitudes eclesiais, sociais e culturais das últimas décadas têm sido, para a nossa Igreja, de facto, despertadores para a missão evangelizadora. Não seria difícil descrever as etapas e analisar as causas deste novo paradigma pastoral; mas, limitar-me-ei a considerá-lo como um dado de facto e acrescentar o meu testemunho. Antes de mais, a nossa sociedade está em constante mutação, sendo que este caráter mutável constitui o âmago de todas as vertentes antropológicas, ou seja, diz respeito a todos e à integralidade do ser humano. Assim, não são apenas as escolhas profissionais que vão mudando ao ritmo da oferta de emprego, nem a voragem com que hoje se embarca na pluralidade de experiências e na diversidade de possibilidades, para depois se tomar uma decisão... Também a dimensão da espiritualidade como que adquiriu um “ritmo” diferente. É assim um misto de espiritualidade buffet e self service, em que se tende a dispensar os “intermediários” e se colhem das várias propostas fragmentos de conveniência. O que constitui, para nós, um real desafio. Mais uma vez, a cena a que São Paulo alude nos Atos dos Apóstolos, no discurso tido no Areópago de Atenas sobre as muitas divindades que flutuavam nas ruas da cidade, inclusive o deus desconhecido, é atual também hoje.
Tal como sempre, também hoje, à Igreja, incumbe a grave responsabilidade de indicar o verdadeiro alimento, a verdadeira água, e oferecê-lo. É essa a sua missão urgente.
Como já anotava o teólogo Yves Congar, acerca da pertinência da missão evangelizadora, conservando uma desarmante atualidade, e cito: “o nosso mundo já não está naquela espécie de harmonia e homogeneidade com a cultura católica, com os seus símbolos, com as formas de expressão católicas. Simplesmente é profano, secular, laico; é científico e técnico; mas também, cada vez mais, utilitário, hiper sensual, violento, afrodisíaco. Em larga medida é ateu, não porque esteja demonstrada a inexistência de Deus, mas porque se constrói cada vez mais fora da perspetiva de Deus e do seu culto. E rematava: hoje, exigem-se gestos verdadeiros, uma palavra simples e verdadeira, sinais fortes e compreensíveis. Quer-se que a liturgia seja de Alguém, que seja expressão da sua alma e, por isso, que envolva e diga respeito à vida.”
Queremos ser Igreja Missionária que, ao estilo de Maria, se levanta apressadamente para a montanha do mundo e da humanidade.
Sé Patriarcal de Lisboa, 2 de setembro de 2023
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