II Domingo da Quaresma - B
Na primeira leitura apresenta-se a figura de Abraão como paradigma de uma certa atitude diante de Deus. Abraão é o homem de fé, que vive numa constante escuta de Deus, que aceita os apelos de Deus e que lhes responde com a obediência total. Soube escutar o Senhor e seguir a sua Palavra sem condições: renunciou o passado, quando deixou a sua terra e a sua gente; agora está disposto a sacrificar também o futuro, oferecendo o filho Isaac, depositário das promessas. Percebe o plano de Deus e segue-o de todo o coração. A sua obediência tornou-se uma fonte de vida para ele, para a sua família e para todos os povos.
Na segunda leitura, São Paulo retoma a figura de Isaac, subindo o monte Moriá, com a lenha do sacrifício às costas, como imagem de Cristo que também sobe o monte Calvário, carregando às costas o lenho da Cruz.
O Evangelho fala da fé dos Apóstolos. Na caminhada para Jerusalém, o primeiro anúncio da Paixão e Morte de Jesus abalou profundamente a fé dos apóstolos. Desmoronaram os seus planos de glória e de poder. Para fortalecer essa fé ainda tão frágil, Cristo tomou três deles, subiu o Tabor e "transfigurou-se..." Proposta de Pedro: "É bom estarmos aqui! Vamos fazer três tendas." Proposta de Deus: "Este é o meu Filho amado, escutai-O!".
Leitura do Livro do Génesis
Naqueles dias,
Deus quis pôr à prova Abraão e chamou-o:
«Abraão!»
Ele respondeu: «Aqui estou».
Deus disse: «Toma o teu filho,
o teu único filho, a quem tanto amas, Isaac,
e vai à terra de Moriá,
onde o oferecerás em holocausto,
num dos montes que Eu te indicar.
Quando chegaram ao local designado por Deus,
Abraão levantou um altar e colocou a lenha sobre ele.
Depois, estendendo a mão, puxou do cutelo para degolar o filho.
Mas o Anjo do Senhor gritou-lhe do alto do Céu:
«Abraão, Abraão!»
«Aqui estou, Senhor», respondeu ele.
O Anjo prosseguiu:
«Não levantes a mão contra o menino,
não lhe faças mal algum.
Agora sei que na verdade temes a Deus,
uma vez que não Me recusaste o teu filho, o teu único filho».
Abraão ergueu os olhos
e viu atrás de si um carneiro, preso pelos chifres num silvado.
Foi buscá-lo e ofereceu-o em holocausto, em vez do filho.
O Anjo do Senhor chamou Abraão do Céu pela segunda vez
e disse-lhe:
«Por Mim próprio te juro – oráculo do Senhor –
já que assim procedeste
e não Me recusaste o teu filho, o teu único filho,
abençoar-te-ei e multiplicarei a tua descendência
como as estrelas do céu e como a areia das praias do mar,
e a tua descendência conquistará as portas das cidades inimigas.
Porque obedeceste à minha voz,
na tua descendência serão abençoadas todas as nações da terra».
SALMO RESPONSORIAL – Salmo 115 (116)
Refrão: Andarei na presença do Senhor sobre a terra dos vivos.
Confiei no Senhor, mesmo quando disse:
«Sou um homem de todo infeliz».
É preciosa aos olhos do Senhor
a morte dos seus fiéis.
Senhor, sou vosso servo, filho da vossa serva:
quebrastes as minhas cadeias.
Oferecer-Vos-ei um sacrifício de louvor,
invocando, Senhor, o vosso nome.
Cumprirei as minhas promessas ao Senhor
na presença de todo o povo,
nos átrios da casa do Senhor,
dentro dos teus muros, Jerusalém.
Leitura da Epístola do apóstolo São Paulo aos Romanos
Irmãos:
Se Deus está por nós, quem estará contra nós?
Deus, que não poupou o seu próprio Filho,
mas O entregou à morte por todos nós,
como não havia de nos dar, com Ele, todas as coisas?
Quem acusará os eleitos de Deus?
Deus, que os justifica?
E quem os condenará?
Cristo Jesus, que morreu, e mais ainda, que ressuscitou
e que está à direita de Deus e intercede por nós?
Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Marcos
Naquele tempo,
Jesus tomou consigo Pedro, Tiago e João
e subiu só com eles
para um lugar retirado num alto monte
e transfigurou-Se diante deles.
As suas vestes tornaram-se resplandecentes,
de tal brancura que nenhum lavadeiro sobre a terra
as poderia assim branquear.
Apareceram-lhes Moisés e Elias, conversando com Jesus.
Pedro tomou a palavra e disse a Jesus:
«Mestre, como é bom estarmos aqui!
Façamos três tendas:
uma para Ti, outra para Moisés, outra para Elias».
Não sabia o que dizia, pois estavam atemorizados.
Veio então uma nuvem que os cobriu com a sua sombra
e da nuvem fez-se ouvir uma voz:
«Este é o meu Filho muito amado: escutai-O».
De repente, olhando em redor,
não viram mais ninguém,
a não ser Jesus, sozinho com eles.
Ao descerem do monte,
Jesus ordenou-lhes que não contassem a ninguém
o que tinham visto,
enquanto o Filho do homem não ressuscitasse dos mortos.
Eles guardaram a recomendação,
mas perguntavam entre si o que seria ressuscitar dos mortos.
Ao transfigurar-se junto dos discípulos, Jesus revela a glória da Ressurreição, e atesta que Ele é o filho amado de Deus Pai, apesar da Cruz que se aproxima.
As figuras de Elias e Moisés ressaltam que a Lei e as Profecias realizam-se plenamente em Jesus.
Na nossa caminhada para a Páscoa, somos também convidados a subir com Jesus a montanha e, na companhia dos três discípulos, viver com Ele a alegria da comunhão. As dificuldades da caminhada não podem fazer desanimar-nos. No meio dos conflitos, o Pai mostra-nos sinais da ressurreição e do alto daquele monte Ele continua a proclamar: "Este é o meu Filho amado, escutai-O". Não desanimemos, os planos de Deus não conduzem ao fracasso, mas à Ressurreição, à vida definitiva, à felicidade sem fim.
O que é ter fé?
Será apenas uma adesão da inteligência a algumas verdades, que decoramos na catequese? Não será mais do que isso?
A fé é a adesão da nossa vida a Deus; é acolher Aquele que quer fazer a sua história connosco; é fazer a Sua vontade (tanto no Tabor, como no Calvário); é um dom gratuito de Deus (não foi Abraão que tomou a iniciativa).
A fé exige uma resposta da pessoa a uma palavra, a uma Promessa; um Serviço pronto e generoso na Obra de Deus; uma Ruptura: deixar a terra dos ídolos que nos prende; e abraçar o desconhecido. (A experiência de Abraão).
Escutar atentamente tudo o que Jesus diz, seguindo seus passos com confiança total, mesmo nos momentos difíceis e incompreensíveis;
Reconhecer esse Cristo desfigurado, presente na pessoa do irmão sobretudo nos excluídos e nos oprimidos pela violência. É fácil reconhecer o Cristo transfigurado no Tabor; mais difícil é reconhecê-lo desfigurado no Monte Calvário; mais difícil é descer o monte, ir ao encontro do Cristo desfigurado na pessoa do irmão...
Não podemos ficar no Monte de braços cruzados. Devemos agir na transfiguração desses irmãos desfigurados. Todos somos convidados a ser Missionários da Transfiguração. O Cristo glorioso não deve ser motivo para fugir das realidades concretas da vida, onde ele nos chama ao serviço. Pelo contrário, o Cristo desfigurado na pessoa de tantos oprimidos aguarda ser transfigurado pela nossa acção.
Pedro estava satisfeito: «É bom estarmos aqui...» Sim, mas só o tempo suficiente para ouvir a voz do Pai, para saber que o caminho só termina na ressurreição. Até lá, é preciso subir, vencer os obstáculos, dar a mão aos que têm medo, pôr em marcha os que pararam: fosse por preguiça, fosse por não saberem porquê nem para quê subir. Só se constrói um mundo melhor quando acreditamos.
Nesta semana, vence a preguiça, vence o comodismo, vai encher de esperança com a tua palavra, a tua visita o doente teu vizinho, o idoso que vive só, o jovem que procura emprego.
É proibido estacionar! É proibido ficar parado!
Cinco amigos procuravam ouro num monte. Depois de um mês encontraram aquilo que se pode chamar um tesouro. No Domingo seguinte, como sempre, desceram até à aldeia vizinha para um pouco de convívio. Mas antes juraram mutuamente não falar a ninguém do seu achado. Ao regressarem ao trabalho deram conta, espantados, de que vários homens os seguiam. Olharam uns para os outros à procura do traidor — alguém dera à língua...
— Foste tu?
— Eu não.
E todos negaram, ninguém dissera nada. Voltaram-se para os que os seguiam e perguntaram:
— Porque nos seguis?
— Porque encontrastes ouro.
— Quem vos disse?
— Ninguém.
— Então como sabeis?
Ouviram então a resposta mais maravilhosa de toda a sua vida:
— Como sabemos? Vê-se-vos nos olhos!
O mesmo aconteceu no Monte Tabor. Jesus pediu que não falassem a ninguém dessa experiência. Os outros deviam descobrir por si nos olhos, espelho da sua alma.
E eu interrogo-me: notar-se-á em nós, cristãos, que encontrámos a Cristo, o tesouro da nossa felicidade. Porque deveria ver-se nos nossos olhos! Ao falar do Transfigurado, notarão os meus ouvintes que acredito n'Ele? Gostaria muito que assim fosse.
Jesus tomou consigo Pedro, Tiago e João,
e subiu só com eles para um lugar retirado num alto monte
Pede à Quaresma
que te ensine o caminho da montanha.
Para que ouses subir ao lugar do encontro
com o Deus da vida e da história.
Na montanha contemplarás o Rosto.
E fixarás n'Ele o olhar.
E descobrirás n'Ele o teu rosto.
E contemplarás todos os horizontes.
Os do teu coração
e todos aqueles onde o humano
se espraia em tantos desafios.
Pede à Quaresma
que te ensine o caminho da montanha.
E ousarás descer
para que o teu olhar de encantamento
incendeie a vida por onde passas.
E sejas sinal de ressurreição.
Palavra do Pai, presença consoladora,
questionas a minha preguiça espiritual
sempre que me convidas a subir.
Neste espaço em que me habitas,
contemplo o mistério do teu estar,
a luminosidade do teu ser
e vislumbro o segredo do amor do Pai,
que me convida a escutar-Te.
Senhor, minha luz,
dissipa as minhas trevas...
e lança-me no vale da missão...
porque é bom, mesmo na dúvida,
saborear a tua presença.
Se o primeiro Domingo da Quaresma nos apresentou Jesus em confronto com a tentação, face a face com Satanás na solidão do deserto, este segundo Domingo mostra-nos Jesus que conhece a transfiguração do seu rosto e de toda a sua pessoa, tornando-se participante da indizível glória do Pai. No itinerário quaresmal, a transfiguração de Jesus indica o fim a que tende este caminho: a ressurreição, de que a transfiguração é antecipação e profecia.
Alguns dias depois de ter anunciado aos seus discípulos a necessidade da sua morte e ressurreição (cf. Lucas 9, 22) e de lhes ter exposto com clareza as condições para o seguir nesse caminho (cf. Lucas 9, 23-26), Jesus «levando consigo Pedro, João e Tiago» – os discípulos que lhe eram mais íntimos – «subiu ao monte para orar». Lucas é o evangelista que mais insiste na oração de Jesus: Ele reza no momento do baptismo recebido de João (cf. Lucas 3, 21), reza antes de escolher os Doze (cf. Lucas 6, 12-13), reza na iminência da sua paixão (cf. Lucas 22, 39-46)...
Também a transfiguração de Jesus ocorre no contexto da sua oração, no mistério do seu encontro pessoalíssimo com o Pai: «Enquanto orava, o aspecto do seu rosto modificou-se». A oração é para Jesus espaço de acolhimento em si da presença de Deus. Presença que é santidade, isto é, alteridade capaz de transfigurar aquele que aceita acolhê-la radicalmente na sua vida. A alteração no rosto de Jesus manifesta que agora ele narra o rosto invisível de Deus (cf. João 1, 18). A oração, além disso, é comunicação de Deus a Jesus mediante a sua “conversação” com Moisés e Elias, que personificam a Lei e os Profetas, ou seja, a Escritura do Antigo Testamento.
Sim, a oração de Jesus é essencialmente escuta da Palavra de Deus contida na Escritura, uma escuta que se torna encontro com quem é vivente em Deus, uma verdadeira experiência da comunhão dos santos. É nesta oração que Jesus encontra a confirmação do seu caminho, orientado agora para a paixão, morte e ressurreição, em continuidade com a história da salvação conduzida por Deus com o seu povo. É por isso que Moisés e Elias «falavam da sua morte, que ia acontecer em Jerusalém». Não por acaso, pouco depois especifica-se que Jesus voltará resolutamente o seu rosto e os seus passos para a cidade santa (cf. Lucas 9, 51), decidido a viver o que na oração compreendeu ser a sua missão.
«Pedro e os companheiros estavam a cair de sono; mas, despertando, viram a glória de Jesus e os dois homens que estavam com Ele.» Mas esta experiência extraordinária, que custa o preço da luta para permanecer vigilante, dura um momento: a transfiguração de Jesus é antecipação da comunhão que espera todos os homens no Reino, é a primícia do mundo completamente sujeito ao sinal da beleza de Deus; mas precisamente é só uma primícia... É por isso que enquanto Pedro, sem saber verdadeiramente aquilo que diz, pede a Jesus para prolongar essa experiência através da construção de três tendas, a nuvem da presença de Deus envolve-os, e dela vem uma voz que proclama: «Este é o meu Filho predileto. Escutai-o».
O grande mandamento «escuta Israel» (Deuteronómio 6, 4) agora ressoa como «escutai-o, o Filho», a Palavra feita carne em Jesus (cf. João 1, 14), o homem no qual a Escritura encontra o seu cumprimento (cf. Lucas 24, 44). Eis o essencial da nossa fé!
O Evangelho deste Domingo coloca-nos portanto em guarda: Jesus não pode ser a projeção dos nossos desejos mas é o Jesus Cristo segundo as Escrituras, e para o conhecer é preciso escutar, meditar e rezar a Palavra contida em toda a Escritura. Tudo isto tendo consciência de que a oração não nos dispensa do esforço quotidiano da obediência a Deus através de Jesus Cristo, ou seja, do cumprimento da nossa vocação pessoal; pelo contrário, a oração ajuda-nos a preencher essa vocação de sentido porque transfigura os acontecimentos e as relações de todos os dias. Foi assim com Jesus, pode ser assim também para nós.
Prior do Mosteiro de Bose