Festa da Transfiguração do Senhor: 6 de Agosto
Situada antes do anúncio da Paixão e da Morte, a Transfiguração prepara os Apóstolos para a compreensão desse mistério. Quase com o mesmo objectivo, a Igreja celebra esta festa quarenta dias antes da Exaltação da Cruz, a 14 de Setembro.
A Transfiguração, manifestação da vida divina, que está em Jesus, é uma antecipação do esplendor, que encherá a noite da Páscoa. Os Apóstolos, quando virem Jesus na sua condição de Servo, não poderão esquecer a sua condição divina.
Recorrendo a elementos simbólicos do Antigo Testamento, o autor apresenta-nos uma catequese sobre Jesus, o Filho amado de Deus, que vai concretizar o seu projecto libertador em favor dos homens através do dom da vida. Aos discípulos, desanimados e assustados, Jesus diz: o caminho do dom da vida não conduz ao fracasso, mas à vida plena e definitiva. Segui-o, vós também!
LEITURA I – Dan 7, 9-10.13-14
Leitura da Profecia de Daniel
«Estava eu a olhar, quando foram colocados tronos
e um Ancião sentou-se.
As suas vestes eram brancas como a neve
e os cabelos como a lã pura.
O seu trono eram chamas de fogo, com rodas de lume vivo.
Um rio de fogo corria, irrompendo diante dele.
Milhares de milhares o serviam
e miríades de miríades o assistiam.
O tribunal abriu a sessão e os livros foram abertos.
Contemplava eu as visões da noite,
quando, sobre as nuvens do céu,
veio alguém semelhante a um filho do homem.
Dirigiu-Se para o Ancião venerável
e conduziram-no à sua presença.
Foi-lhe entregue o poder, a honra e a realeza,
e todos os povos e nações O serviram.
O seu poder é eterno, que nunca passará,
e o seu reino jamais será destruído.»
Daniel, em visão nocturna, vê a história do ponto de vista de Deus. Sucedem-se os impérios e os opressores, mas o projecto de Deus não falha. Ele é o último juiz, que avaliará as acções dos homens e intervirá para resgatar o seu povo. Aos reinos terrenos contrapõe-se o Reino que o Ancião confia a um misterioso “filho de homem” que vem sobre as nuvens. Trata-se de um verdadeiro homem, mas de origem divina.
No nosso texto já não se trata do Messias davídico que havia de restaurar o Reino de Israel, mas da sua transfiguração sobrenatural: o Filho do homem vem inaugurar um reino que, embora se insira no tempo, “não é deste mundo” (Jo 18, 36). Ele triunfará sobre as potências terrenas, conduzindo a história à sua realização escatológica. Jesus irá identificar-se muitas vezes com esta figura bíblica na sua pregação e particularmente diante do Sinédrio, que o condenará à morte.
Salmo Responsorial (Salmo 96 (97)
Ref: O Senhor é rei, o Altíssimo sobre toda a terra.
O Senhor é rei: exulte a terra,
rejubile a multidão das ilhas.
Ao seu redor, nuvens e trevas;
a justiça e o direito são a base do seu trono.
Derretem-se os montes como cera
diante do senhor de toda a terra.
Os céus proclamam a sua justiça
e todos os povos contemplam a sua glória.
Vós, Senhor, sois o Altíssimo sobre toda a terra,
estais acima de todos os deuses.
Alegrai-vos, ó justos, no Senhor
e louvai o seu nome santo.
LEITURA II – 2 Pedro 1, 16-19
Leitura da Segunda Epístola de S. Pedro
«Caríssimos:
Não foi seguindo fábulas ilusórias
que vos fizemos conhecer o poder e a vinda
de Nosso Senhor Jesus Cristo,
mas por termos sido testemunhas oculares da sua majestade.
Porque Ele recebeu de Deus Pai honra e glória,
quando da sublime glória de Deus veio esta voz:
«Este é o meu Filho muito amado,
em quem pus toda a minha complacência».
Nós ouvimos esta voz vinda do céu,
quando estávamos com Ele no monte santo.
Assim temos bem confirmada a palavra dos Profetas,
à qual fazeis bem em prestar atenção,
como a uma lâmpada que brilha em lugar escuro,
até que desponte o dia
e nasça em vossos corações a estrela da manhã.»
Pedro e os seus companheiros reconhecem-se portadores de uma graça maior que a dos profetas, porque ouviram a voz celeste que proclamava Filho muito amado do Pai, Jesus, seu mestre. Mas a Palavra do Antigo Testamento continua a ser “uma lâmpada que brilha num lugar escuro” (v. 19), até ao dia sem fim, quando Cristo vier na sua glória. Jesus transfigurado sustenta a nossa fé e acende em nós o desejo da esperança nesta caminhada. A “estrela da manhã” já brilha no coração de quem espera vigilante.
EVANGELHO – Mt 17,1-9
Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Mateus
«Naquele tempo,
Jesus tomou consigo Pedro, Tiago e João seu irmão
e levou os, em particular, a um alto monte
e transfigurou Se diante deles:
o seu rosto ficou resplandecente como o sol
e as suas vestes tornaram se brancas como a luz.
E apareceram Moisés e Elias a falar com Ele.
Pedro disse a Jesus:
"Senhor, como é bom estarmos aqui!
Se quiseres, farei aqui três tendas:
uma para Ti, outra para Moisés a outra para Elias."
Ainda ele falava,
quando uma nuvem luminosa os cobriu com a sua sombra
e da nuvem uma voz dizia:
"Este é o meu Filho muito amado,
no qual pus toda a minha complacência. Escutai O."
Ao ouvirem estas palavras,
os discípulos caíram de rosto por terra a assustaram se muito.
Então Jesus aproximou se e, tocando os, disse:
"Levantai vos e não temais."
Erguendo os olhos, eles não viram mais ninguém, senão Jesus.
Ao descerem do monte, Jesus deu lhes esta ordem:
"Não conteis a ninguém esta visão,
até o Filho do homem ressuscitar dos mortos."»
A secção de Mt 16,21 - 20,34 é uma catequese sobre o discipulado, como seguimento de Jesus até à cruz. O texto que hoje nos é proposto faz parte dessa catequese alargada.
O relato da transfiguração de Jesus é antecedido do primeiro anúncio da paixão (cf. Mt 16,21-23) e de uma instrução sobre as atitudes próprias do discípulo (convidado a renunciar a si mesmo, a tomar a sua cruz e a seguir Jesus no seu caminho de amor e de entrega da vida – cf. Mt 16,24-28). Depois de terem ouvido falar do “caminho da cruz” e de terem constatado aquilo que Jesus pede aos que o querem seguir, os discípulos estão desanimados e frustrados, pois a aventura em que apostaram parece encaminhar-se para um rotundo fracasso; eles vêem esfumar-se – nessa cruz que irá ser plantada numa colina de Jerusalém – os seus sonhos de glória, de honras, de triunfos e perguntam-se se vale a pena seguir um mestre que nada mais tem para oferecer do que a morte na cruz.
É neste contexto que Mateus coloca o episódio da transfiguração. A cena constitui uma palavra de ânimo para os discípulos (e para os crentes, em geral), pois nela manifesta-se a glória de Jesus e atesta-se que Ele é – apesar da cruz que se aproxima – o Filho amado de Deus. Os discípulos recebem, assim, a garantia de que o projecto que Jesus apresenta é um projecto que vem de Deus; e, apesar das suas próprias dúvidas, recebem um complemento de esperança que lhes permite “embarcar” e apostar nesse projecto.
Literariamente, a narração da transfiguração é uma teofania – quer dizer, uma manifestação de Deus. Portanto, o autor do relato vai colocar no quadro que descreve todos os ingredientes que, no imaginário judaico, acompanham as manifestações de Deus (e que encontramos quase sempre presentes nos relatos teofânicos do Antigo Testamento): o monte, a voz do céu, as aparições, as vestes brilhantes, a nuvem e mesmo o medo e a perturbação daqueles que presenciam o encontro com o divino. Isto quer dizer o seguinte: não estamos diante de um relato fotográfico de acontecimentos, mas de uma catequese (construída de acordo com o imaginário judaico) destinada a ensinar que Jesus é o Filho amado de Deus, que traz aos homens um projecto que vem de Deus.
Mensagem
Esta página de catequese, destinada a ensinar que Jesus é o Filho de Deus e que o projecto que Ele propõe vem de Deus, está construída sobre elementos simbólicos tirados do Antigo Testamento. Que elementos são esses?
O monte situa-nos num contexto de revelação: é sempre num monte que Deus Se revela; e, em especial, é no cimo de um monte que Ele faz uma aliança com o seu Povo. (Poderíamos aqui referir alguns destes grandes encontros com Deus: Abraão – no Moriá; Moisés – no Horeb, no Sinai e no Nebo; Elias – no Carmelo e no Horeb; Jesus – no Monte das Bem-aventuranças para promulgar a nova Lei, no Tabor para manifestar uma antecipação de sua glória, no Calvário para dar sua vida e no monte da Ascensão para confirmar sua exaltação definitiva pelo Pai mediante sua ressurreição.)
A mudança do rosto e as vestes de brancura resplandecente recordam o resplendor de Moisés, ao descer do Sinai (cf. Ex 34,29), depois de se encontrar com Deus e de ter as tábuas da Lei.
A nuvem, por sua vez, indica a presença de Deus: era na nuvem que Deus manifestava a sua presença, quando conduzia o seu Povo através do deserto (cf. Ex 40,35; Nm 9,18.22; 10,34).
Moisés e Elias representam a Lei e os Profetas (que anunciam Jesus e que permitem entender Jesus); além disso, são personagens que, de acordo com a catequese judaica, deviam aparecer no “dia do Senhor”, quando se manifestasse a salvação definitiva (cf. Dt 18,15-18; Mal 3,22-23).
O temor e a perturbação dos discípulos são a reacção lógica de qualquer homem ou mulher diante da manifestação da grandeza, da omnipotência e da majestade de Deus (cf. Ex 19,16; 20,18-21).
As tendas parecem aludir à “festa das tendas”, em que se celebrava o tempo do êxodo, quando o Povo de Deus habitou em “tendas”, no deserto.
A mensagem fundamental, amassada com todos estes elementos, pretende dizer quem é Jesus. Recorrendo a simbologias do Antigo Testamento, o autor deixa claro que Jesus é o Filho amado de Deus, em quem se manifesta a glória do Pai. Ele é, também, esse Messias libertador e salvador esperado por Israel, anunciado pela Lei (Moisés) e pelos Profetas (Elias). Mais ainda: ele é um novo Moisés – isto é, aquele através de quem o próprio Deus dá ao seu Povo a nova lei e através de quem Deus propõe aos homens uma nova aliança.
Da acção libertadora de Jesus, o novo Moisés, irá nascer um novo Povo de Deus. Com esse novo Povo, Deus vai fazer uma nova aliança; e vai percorrer com ele os caminhos da história, conduzindo-o através do “deserto” que leva da escravidão à liberdade.
Esta apresentação tem como destinatários os discípulos de Jesus (esse grupo desanimado e frustrado porque no horizonte próximo do seu líder está a cruz e porque o mestre exige dos discípulos que aceitem percorrer um caminho semelhante). Aponta para a ressurreição, aqui anunciada pela glória de Deus que se manifesta em Jesus, pelas vestes resplandecentes (que lembram as vestes resplandecentes dos anjos que anunciam a ressurreição – cf. Mt 28,3) e pelas palavras finais de Jesus (“não conteis a ninguém esta visão, até o Filho do Homem ressuscitar dos mortos” – Mt 17,9): diz-lhes que a cruz não será a palavra final, pois no fim do caminho de Jesus (e, consequentemente, dos discípulos que seguirem Jesus) está a ressurreição, a vida plena, a vitória sobre a morte.
Uma palavra final para o desejo – manifestado por Pedro – de construir três tendas no cimo do monte, como se pretendesse “assentar arraiais” naquele quadro. O pormenor pode significar que os discípulos queriam deter-se nesse momento de revelação gloriosa, ignorando o destino de sofrimento de Jesus. Jesus nem responde à proposta: Ele sabe que o projecto de Deus – esse projecto de construir um novo Povo de Deus e levá-lo da escravidão para a liberdade – tem de passar pelo caminho do dom da vida, da entrega total, do amor até às últimas consequências.
O Evangelho de hoje revela-nos a chave da fé. A voz do Pai convida-nos a escutar Jesus, seu Filho amado, porque Cristo é o caminho, a verdade e a vida; porque Ele é a Palavra definitiva do Pai, anunciada pela Lei e pelos profetas; porque só Ele tem palavras de vida eterna. A Transfiguração torna-se, assim, uma meta possível para todo aquele que escuta Jesus.
Transfiguração quer dizer transformação pessoal por meio da conversão, para num segundo momento, caminhar com Cristo até à fascinante aventura da entrega total aos irmãos, especialmente aos mais necessitados.
O mundo transforma-se quando acolhemos a proposta de Deus: «Este é o meu filho muito amado, no qual pus toda a minha complacência. Escutai-O».